Abri os olhos e vi a poeira dourada pairando no cômodo, acentuada pelo feixe de luz que se esgueirava pelo quarto. Cobertas reviradas e emaranhadas, quatro travesseiros, e vários pares de roupa. Um silêncio calmo e preguiçoso era interrompido aos poucos por sons de movimento pela casa. Chamei pelo nome dela, e do banheiro veio a resposta, pela porta entreaberta. De lá vinham os barulhos de pentes e escovas de dente. De lenços e fios de cabelo. O bom dia veio numa sintonia alegre e sorridente, transparecendo esbanjo de bom humor, reflexo de uma noite bem passada. Sorri também. Ela levantou mais cedo sem me acordar, só para se arrumar. Levantando vagarosamente, esticando a coluna e alongando os braços, escolhi uma música que sabia ser do seu gosto. Para que soubesse que era para ela. Aumentei o volume para ensurdecer meus passos e encobrir minha espreita. Desci alguns goles de água pela garganta e inclinei a cabeça para observar. Apoiei o ombro no batente da porta. Olhei escondido pela fresta que permitia uma visão do espelho. Ela, com apenas as roupas íntimas, segurava os cabelos para
cima enquanto se arrumava pela manhã. Toda a pele, com brilho de diamante e toque tenro de veludo, reluzia a luz que vinha do outro lado, e tonalizava com as luminárias da parede. Movimentando tenuamente todo o corpo, de maneira sensual, mas contida, pessoal e privada, dançava pelo primeiro riff da melodia. Mas a melhor parte era o sorriso sincero e particular que ela ostentava. Era o mais lindo que alguém pode notar. Eu a vi ali sem maquiagem, sem produção, sem nenhuma das cortinas que se costumam usar. Parte do batom estava ainda no meu pescoço. Eu a vi sem ela saber. E por um bom tempo eu fiquei ali escondido, aproveitando e me contagiando. Deixando-me embriagar daquele cheiro que estaria em cada sonho e me esverdear do tom daqueles olhos. Sem querer perder nada daquela cena. Sem me arrepender porque ela é do meu tipo. Eu não queria perder nada, porque não existia algo que eu não pudesse ser naquela hora. Como se eu me sentisse a razão e o motivo, o fim e o objetivo, de cada gesto. Eu era aquele movimento. Mas antes de chegar ao fim da rotina matinal, prendendo o cabelo um pouco mais ao lado corpo, sobre os ombros, eu recuei. Queria manter aquela imagem dela nua e desprotegida. Dela como ela é. Dela como eu a faço. Mas sem que ela soubesse, para que não se envergonhasse disso, ou se ofendesse com qualquer sorriso. Eu sorri e me alegrei. Registrei. E fui preparar um café.